Vendedor pra caralho



Daniel Galera





I


Costumo dizer que este modelo é o casamento perfeito de desempenho, conforto e economia, você diz. Todo mundo vem aqui pedindo pra ver o Bravura, mas o Hidra é um carro pra lá de interessante também.

O cliente menciona a propaganda do Bravura.

Sim, sim, você diz, por causa da propaganda e tal, e o Bravura é um bom carro, não estou dizendo que não é um bom carro. Mas o cara vê a Ísis Valverde na propaganda, já dá uma animada no cara, chega aqui na loja cheio de gás, vê o carro, que é bonitão, vê a faixa de preço e fica meio assim.

O cliente faz que sim com a cabeça, claramente cansado, indeciso, confuso por ter opções, odiando ter que escolher, ter que pensar no que vai gastar o dinheiro que não tem. O cliente sai para conquistar o mundo e se sente acuado num terreno baldio, e o seu trabalho é reconciliá-lo com aquela pessoa da noite anterior que foi se deitar acreditando que precisava de um carro novo. Vendedor pra caralho, nos termos do Gerente.

Você diz: Aí eu explico pro cliente que o Hidra acelera um pouco menos, mas não bebe tanto combustível. E colocando alguns acessórios, tem conforto próximo do Bravura e ainda fica numa faixa de preço mais interessante. Mais caro que o Gazela, que é a linha popular, mas não tem nem comparação.

O cliente mexe na barba, balbucia, olha fixamente para a carroceria cor de pêssego do automóvel zero. Abre e fecha a porta do passageiro. O ruído da tranca é agradável como o de um osso se encaixando no lugar. O ruído de uma dor sumindo.

O Bravura tem essas linhas agressivas, que todas as marcas copiam da Hyundai, você diz. O pessoal gosta hoje em dia. Mas olha o Hidra. Mais suave, elegante.

Você passa a mão na carroceria imaculada, moldada e pintada por robôs.

Esse carro, você diz, olhando do ângulo certo, lembra um Jaguar antigo. Sabe?

O cliente parece confuso, pega o celular, talvez para conferir o Instagram. Você está prestes a perdê-lo. Procura aí no celular, você diz. Digita Jaguar anos 70. Enquanto ele opera o tecladinho virtual do iPhone, você ajusta o crachá com gravador de áudio e câmera embutidos, que é um pouco pesado e vive se deslocando por cima da sua camisa.

O cliente olha as imagens.

Tá vendo, você diz. Dá pra ver a inspiração dos designers? Eu diria que o Hidra tem uma classe maior. É pro motorista que já tem um olhar mais sofisticado. Esse carro não precisa de propaganda com a Ísis Valverde, tá me entendendo?

O cliente não se move, parece sonhar de olhos abertos. Sua camisa polo rosa tem placas cinzentas de desodorante nas axilas.

Esse carro só precisa que alguém com olhar diferenciado entre na loja, você diz.



II


Depois de apertar com firmeza a mão do cliente, você se dirige ao terminal que foi instalado semana passada no corredor dos fundos, ao lado da porta do banheiro dos funcionários. Pela primeira vez lhe ocorre que o terminal parece ter sido escondido como se fosse algo sujo, e de fato, bem a seu lado está um suporte de parede com vassouras e rodos. O equipamento é muito parecido com os tótens de auto-atendimento das companhias aéreas, apenas um pouco menor e sem logomarcas visíveis, de uma tonalidade bordô uniforme, com uma tela de toque engordurada pelas digitais suas e de seus colegas. Na primeira tela você insere o seu código de funcionário, o CPF do cliente, o valor e condições da compra, um Hidra 1.6 Pristine com bancos de couro e sistema multimídia Satellite opcionais. Você leva quase dez minutos para preencher o formulário, se detendo nos campos onde precisa descrever os detalhes da venda e os principais argumentos e inputs persuasivos. Você insere quarenta e duas palavras-chave, entre elas Jaguar, economia, olhar sofisticado e olhar diferenciado. Por fim, conecta o pequeno dispositivo semelhante a um pen drive ao terminal e aguarda enquanto ele transmite todo o conteúdo sonoro e visual da venda, registrados pelo gravador e pela câmera escondidos no crachá de funcionário. A barra de progresso está na metade quando o Gerente se aproxima por trás e começa a espiar a tela do terminal.

Mais um Hidra. Quantos opcionais?

Bancos e multimídia, você diz.

Bom, o Gerente diz com a voz morna. Tentou empurrar o kit off-road?

Você não responde. Uma campainha avisa que a transferência se encerrou, e o Gerente avança na sua frente, sem cerimônia, e começa a revisar os dados inseridos no sistema, clicando de tela em tela, lendo com assustadora rapidez.

Muito bem, diz o Gerente.

Você vai as fundos da concessionária para fumar um cigarro comemorativo. São quatro horas da tarde de um julho quente como o verão, e o sol dourado parece querer emoldurar o instante para dizer que você merece. Você imagina um terremoto, e depois se pergunta por que às vezes imagina essas coisas. Tirando o celular do bolso, você ignora as centenas de mensagens, abre o navegador e clica no atalho para o canal de YouTube de Brenda. Há um vídeo novo, intitulado “O Maníaco do banho!”. Você o assiste até o fim, dura 1m40s. É uma novelinha cheia de suspense. Brenda e os amiguinhos do condomínio se esgueiram entre as colunas do estacionamento do prédio, trocando olhares e sinais parecidos com os de soldados realizando uma invasão-surpresa num filme de ação. Eles encurralam Ossobuco, o vira-latas de patas curtas da vizinha da Torre Atenas, você sempre esquece o nome dela, mas o menino deles se chama Sávio. Depois o filme corta para o box do chuveiro da casa de alguém, não é a sua, onde dão banho no Ossobuco, que está paralisado de terror. O último plano mostra o ralo entupido por uma massa de pelos de cachorro e bolhas de sabão.



III


Na mesma noite, à mesa de jantar, depois que Brenda termina de comer seu pedaço de lasanha e arvorezinhas de brócolis e vai para a sala ver sua cota de tevê, você comenta em voz baixa com sua esposa a respeito dos vídeos da menina.

Mas qual é o problema, pergunta a esposa. Você viu algum assunto inadequado? Acha que ela tá gastando tempo demais com isso?

Não, você diz. Só fico meio assustado com a qualidade dos vídeos. Ela tem dez anos. Não entendo como ela cria esses filminhos, como edita. É só com o celular? Nunca demos uma câmera de vídeo nem nada assim. Ela usa a câmera de alguém?

Acho que ela faz só com o celular mesmo, diz a esposa.

Eu nunca vejo ela filmando nada. Não entendo quando ela acha tempo pra se dedicar a isso.

É uma coisa dela. Melhor não interferir. Eu vi ela filmando uma vez. Perguntei como ela fazia.

Viu? Nunca me contou.

Não foi nada de mais. Peguei ela filmando vasos de plantas no deque da piscina, no inverno passado. Perguntei o que ela estava fazendo. Sabe o que é mais incrível?

O quê.

Ela filma todos os planos na ordem em que vão aparecer. Pensa tudo de antemão, tem o filminho inteiro montado na cabeça. Tipo, ela pensa antes em como as cenas vão ficar coladas, nos cortes. Depois ela só cola os pedaços na ordem em que filmou.

Parece meio que um superpoder.

Pra mim e pra ti. Pra gurizada da idade dela é normal, acho.

Bom, os dois mil e quinhentos reais do colégio parecem estar servindo pra alguma coisa.

A esposa mastiga. Você lembra de quando conversaram sobre economizar em tudo, menos na educação da menina. Um lado seu parece se ressentir daquela conversa, e sua esposa parece notar, e sempre que isso acontece parece que vocês se odeiam um pouco, embora nenhuma palavra seja dita.

Viu que o prefeito novo fechou as farmácias populares?

Acho que ouvi no rádio.

Fecharam essa semana. Fiz a soma dos remédios da minha mãe na farmácia normal. Quase oitocentos.

Puta que me pariu.

Eu sei.



IV


Você está trancado na Venâncio Aires com Brenda no banco do passageiro, a caminho do colégio. Depois de vinte minutos conversando, os assuntos terminaram, e você a autorizou a usar o celular. Ela desliza o dedinho na tela, atenta à sucessão de imagens.

O que é isso, meu amor?

Um meme que eu gosto.

Ela mostra a tela para você. É um personagem de história em quadrinhos que parece um balão com pernas, olhos inchados e bico de pato.

É uma tirinha de quadrinhos?

Não, pai. É um meme.

Eu achava que meme era outra coisa. Enfim. Que bicho legal. Eu adorava as tirinhas do Garfield, conhece esse?

Além dos vídeos, Brenda tem uma relação esquisita com um aplicativo de lembretes. Cria dezenas deles, alguns práticos sobre fazer o dever de casa, desenhar um pavão pra vovó ou ir no aniversário de uma coleguinha, mas a maioria tem algo de esquisito ou fantasioso.



Depois de deixá-la em frente à escola, você segue algumas quadras a caminho da concessionária e o motor do seu Gazela estraga. Você nunca ouviu nada parecido, é um ruído de broca de dentista seguido de um guincho animalesco, e de repente o volante trava e o carro não anda mais. Você chama o guincho do seguro e chama um motorista pelo aplicativo para chegar ao serviço no horário. Uma hora depois, depositam o seu Gazela na oficina da concessionária. Gilson, o mecânico-chefe, vem perguntar o que houve.

Não sei, fez um barulho bizarro. Parecia uma engenagem rachando mesmo.

Vamos ter que abrir o motor, diz Gilson. A fila tá bem grande, muita revisão e seminovo chegando, mas até amanhã matamos isso.

Você ainda não atendeu nenhum cliente quando o Gerente arrebanha os vendedores e informa que a diretora nacional chamou uma videoconferência sobre o novo sistema de auto-atendimento que está sendo implantado.

No meio do expediente, você pergunta.

Reunião relâmpago, diz o Gerente.

A sala de reuniões tem quatro televisores de cinquenta polegadas. A diretora nacional, uma moça mais jovem que você, chamada Ester Cavendish, aparece de tailleur azul numa das telas.

Contamos com nossos venderores para alimentar o banco de dados do novo sistema de auto-atendimento, diz a diretora. Os terminais vão coletar as informações que nos permitirão oferecer aos clientes uma experiência de compra mais rápida, eficiente, lúdica e prazerosa, enfim, mais automatizada, diz a diretora. Temos recebido um feedback positivo das filiais gaúchas, mas chamou a nossa atenção que alguns vendedores não preenchem os formulários com a seriedade necessária, diz a diretora. Ela continua falando no assunto por mais alguns minutos, mas em certo momento você deixa de prestar atenção, pois se dá conta, pela primeira vez, daquilo que deveria estar óbvio desde que o terminal surgiu no corredor dos banheiros. Você está alimentando com dados o sistema que fará o seu trabalho no futuro próximo. Você está trabalhando para viabilizar a tecnologia que garantirá a sua própria obsolescência.

Quando a diretora encerra sua fala e pergunta se há perguntas, você levanta a mão.



V


Depois da reunião, você vai fumar um cigarro nos fundos. A nicotina substitui um tremor por outro. Você olha o celular e constata que Brenda postou mais um vídeo. São imagens de moradores de rua, de escadas rolantes e de pessoas conversando entre si e usando seus celulares ao mesmo tempo em que conversam. As três categorias de cenas se alternam por dois minutos. Esse vídeo não parece uma novelinha, não é uma história com início, meio e fim.



VI


No final daquele expediente, no qual você não fechou nenhuma venda, o Gerente ordena que você vá à salinha da gerência. A empresa enviou uma psicóloga. Assim como a diretora nacional, ela é mais jovem que você. Não parece ter mais de vinte e poucos anos. Por alguma razão, talvez as sementes de acupuntura presas com esparadrapo na orelha, talvez a aura argentária em torno de uma constituição suburbana, ela faz você pensar numa gerente de banco.

Estamos entendendo que você está com o motivacional um pouco vulnerável, ela diz.

Pode ser.

Gostaria de falar sobre o incidente da reunião de hoje? O que aconteceu?

Só manifestei uma opinião. Acho uma sacanagem que tenhamos que trabalhar no sistema de inteligência artificial que vai trabalhar no nosso lugar. Não quero ser forçado a construir o banco de dados que vai me substituir.

Não é assim que a empresa descreve o sistema. O sistema vai melhorar as condições de trabalho nas concessionárias, diminuir custos, permitir jornadas mais curtas para os funcionários e melhorar a experiência do cliente.

É um sistema de auto-atendimento, guria. Aquele terminal vai tomar meu emprego.

Eu gostaria de conversar sobre a sua auto-estima. Você sabe quais são os cinco pilares da auto-estima?

Seis.

Perdão?

No livro que eu tenho em casa, diz que são seis pilares. Ou oito, não lembro agora.

Interessante você mencionar “casa”, diz a psicóloga. Um dos pilares da auto-estima é a família. Como você definiria sua situação familiar em três palavras?

Você não diz o que pensa. Que é o seguinte: você se sente um escravo construindo o mundo de sua filha. Você morrerá não uma, mas múltiplas mortes nos anos por vir.



VII


No dia seguinte, você chega ao trabalho e, antes de qualquer coisa, vai checar com os mecânicos se descobriram o problema no seu carro. Um mecânico diz que não tiveram tempo de investigar o seu Gazela. Outro diz que deu uma olhada no motor na noite anterior mas não conseguiu encontrar o problema. Você perde a cabeça e solta um palavrão.

Vocês consertam esses carros dias e noite, você diz. Muitos de vocês começaram fabricando esses carros. Como podem não achar o problema no meu motor? Eu preciso levar minha filha no colégio, preciso levar minha sogra na hemodiálise toda semana. Não tem um arrego pra funcionário da empresa? Porra.

A raiva aumenta a sua vontade de vender. De ser vendedor pra caralho. De mostrar que você pode mais que um terminal com tela de toque e voz de maquininha de estacionamento. Você vende um Bravura para uma jovem que vem à loja de chinelos Havaianas, sinal inequívoco de que é rica, e uma SUV Zeta Turbo, parcelada em sessenta vezes, a um sujeito careca de meia-idade que levava um cachorrinho dentro da jaqueta de couro. Mas na hora de preencher os formulários do terminal, você sente a obrigação moral de ser criativo. O que o cliente procurava em um carro? Compensação simbólica para micropenia. Quais foram os principais argumentos que efetivaram a compra do cliente? O argumento de que a venda estava sendo feita por um ser humano como ele.

O expediente termina e, como não há progresso na oficina com o conserto de seu carro, você decide voltar de ônibus para casa. Pega o T1 na Av. Ipiranga e, ao contrário do que esperava, consegue sentar na janela, alguns pontos antes do coletivo ficar lotado. Você não lembra há quantos meses não andava de ônibus, devem ser anos, você pensa. O cheiro dos corpos transpirando no verão fora de época lhe causa prazer, você lembra de ir e voltar de ônibus para o colégio e se inebriar ou mesmo se excitar com o suor e o hálito das outras pessoas, uma perversão da qual tinha orgulho por algum motivo. Você encara o rosto dos outros passageiros e acha quase todos eles bonitos, homens e mulheres, o mundo lhe parece feito majoritariamente de pessoas lindas, bocas grossas e narizes pontudos sempre combinando com o restante das feições, com o formato do rosto. Todo rosto é único e harmônico a seu modo. Você se sente bem de ver as coisas assim. Isso faz de você uma boa pessoa, você pensa. Boa em essência, não importa tanto o que você faça ou deixe de fazer. É um pensamento estranho, você não tem certeza se ele faz sentido. O ônibus sacode, freia brusco, você saboreia o devaneio enquanto ainda não precisa puxar a cordinha e descer.



VIII


Acontece bem antes do que você espera. Na manhã seguinte você já é demitido. Está trabalhando há meia hora quando o Gerente manda chamá-lo. O sistema acusou discrepâncias entre os dados preenchidos por você no formulário e os áudios e vídeos transferidos do pen drive. O Gerente menciona a atitude escandalosa e desrespeitosa manifestada por você na última teleconferência com a diretora nacional, onde já se viu desafiar uma executiva dessa maneira, e parafraseia uma suposta cláusula contratual que trata de sabotagem dos interesses da empresa. Você lembra ao Gerente que os clientes estão sendo gravados sem autorização pelos dispositivos de escuta e de imagem espalhados nos corpos dos atendentes e por todo o ambiente da concessionária, e que pode não ser de interesse da empresa que isso venha a público. O Gerente fita você por alguns segundos, diz que gosta de você, que você é um bom vendedor, e que agora precisa pensar nos próprios interesses, e nos da sua família. Ele lhe entrega uma pasta. Aí dentro está a papelada, diz o Gerente. Você lê por cima os documentos, coloca a pasta de volta na mesa e diz que não vai assinar nada.

Você deixa o Gerente falando sozinho e caminha rápido até a oficina. Manda chamar Gilson. O mecânico-chefe, sempre tão simpático, resmunga que ainda não mexeram no seu carro.

Acabo de ser demitido, você diz. Preciso levar meu carro embora. Não podem cuidar disso logo?

Não conseguimos identificar o problema no motor, diz Gilson. Precisamos fazer mais uns testes, mas o rapaz que ficou encarregado do teu carro está atolado de serviço.

Você dá as costas e começa a andar em direção à saída da loja, pensando em deixar o carro lá e nunca mais voltar. O Gerente alcança você e agarra o seu braço. Na última vez que agarraram seu braço, você tinha catorze anos e estava no pátio de uma escola pública, e sua reação foi se virar e dar um murro no meio do rosto de quem o agarrava. Você se vira e dá um murro no rosto do Gerente. A pasta cai no chão da concessionária e os papéis se espalham entre um mostruário de rodas um Gazela conversível, o modelo comemorativo dos quarenta anos de existência da fabricante. O Gerente não cai, mas fica meio que dançando sobre o piso branco e reflexivo da concessionária, segurando o rosto e gemendo como um cão atropelado. Você acerta uma pedalada bem no meio da porta do Gazela conversível, que se deforma como se fosse cartolina. Você fala em voz alta para um cliente inexistente: Latarias que se deformam proporcionam maior segurança aos passageiros do automóvel. Você olha para o lado e vê o segurança da loja se aproximando, com uma mão espalmada à frente do rosto, a outra na cintura, pedindo calma. Uma parte de você sempre sonhou em fazer o que você faz em seguida. Você se engalfinha com o segurança.



IX


No fim das contas, é o próprio segurança que conversa com o brigadiano e impede que a situação termine na delegacia. O segurança se chama Borges e vocês já fumaram cigarros juntos, você sabe que ele viu uma colega morrer num tiroteio durante uma tentativa de assalto a um carro-forte. Ele precisou bater em você, mas é amigo do policial militar e graças a ele você tem liberdade para voltar para casa com a camisa respingada de sangue e uma notícia péssima que poderia ter sido ainda pior. Você sabe que sua esposa vem tentando conseguir emprego de assessora de imprensa, secretária, o que for, mas, assim como você, ela já está entrando naquela idade em que realmente não é fácil. Você está agora na portaria do condomínio residencial protegido por muros altos e espirais de concertina, hesitando um pouco antes de entrar, se mantendo fora do campo de visão do porteiro, como se tivesse vergonha dele. Seu celular vibra. É uma mensagem instantânea de sua filha, contendo um link para um vídeo. Você nunca conversou com ela sobre os vídeos, de certa forma você é um stalker do canal de YouTube de Brenda, mas agora, pela primeira vez, parece que ela o convida a assistir à sua mais recente produção. Você clica no link e depois de alguns segundos o streaming começa. A luz é crepuscular, a câmera se movimenta por uma colina ou morro coberto de vegetação rasteira. No alto, à distância, alguma coisa brilha. Sua filha caminha com o celular na direção da luz cintilante. Você repara que o vídeo é, mais uma vez, bastante diferente do anterior, não tem cortes, lembra mais esses filmes que são filmados com câmera na mão, filmes com imagem tremida, que tentam ser mais realistas. Demora para chegar ao alto do morro, mas até que enfim ela chega. Onde ela filmou isso, meu Deus, você pensa. Você vê a mãozinha dela procurar alguma coisa no meio do capim. Ela recolhe um pequeno objeto. É uma tampinha de garrafa. Você tem quase certeza de que tampinhas de garrafa nem existem mais, mas ali está uma. Está entre os dedinhos dela, refletindo a luz do sol para a câmera do celular.



© Daniel Galera. Publicado originalmente na revista Baiacu, editora Todavia, 2017



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